Confira a Crônica da semana da Academia de Letras dos Campos Gerais: "Os Campos Gerais Segundo Nelson Rodrigues"
A discrição não recomenda que a história edificante abaixo seja contada em jornais, mas assim me pediram e insistiram os únicos descendentes vivos, bastante remotos, todos confiantes de que o tempo atenua os efeitos das ações e paixões humanas e cientes de que já há várias décadas a querela que vou narrar tramita tão somente nas instâncias celestiais.
Sucede que o casamento foi arranjado e, como de hábito, os nubentes eram desiguais. ELE, como o pai, era destemido, amante da contenda e do desastre. NELA, como na mãe, doçura e comedimento abraçavam-se numa simbiose perfeita. A cerimônia foi celebrada não vem ao caso onde; naturalmente, o consórcio foi infeliz desde o primeiro dia. O sujeito era autoritário como um patriarca do Velho Testamento e a moça, para olhar pela janela para ver se ia chover, precisava de autorização por escrito lavrada em cartório com firma reconhecida e duas testemunhas com endosso ao portador. Para piorar, havia um vizinho que por ali aparecia com frequência pretextando futilidades diversas naquela linguagem viperina que botou o Éden a perder. ─ "Isso ainda vai arruinar" ─, dizia a mãe dela para o pai dele, ─ "aconselha o teu filho que não desate esses brios por qualquer besteirada". O matuto, bronco e reacionário ele próprio, sabia que o fruto não cai longe do pé e só calava.
Ocorre que o marido precisou se ausentar de casa para fazer um transporte de gado e, para não dizer que fosse completamente o cão, tencionou deixar a esposa na fazenda para não expô-la às maleitas e aos andaços que varavam a região, sem contar os assaltos dos bandoleiros e as estradinhas cruciantes.
─ Posso ficar com teu irmão, aí você sossega esse ciúme! ─, ela sugeriu ternamente, e só emprego o ponto de exclamação por solidariedade ao revisor, pois aquela voz não exclamava nada.
O homem foi, voltou e a mulher, que se enchera de seu comportamento belicoso, rompera as ataduras matrimoniais que a ligavam àquele perturbado e se mandara. Ele pegou na carabina, botou a cartucheira e foi buscá-la na casa do vizinho, que nada tinha com a história. Com quem, então?
Você, leitor perspicaz e cioso de antecipar as reviravoltas, pensa que já tem a resposta: com o cunhado.
Não foi dessa vez. Os que me solicitaram essa crônica juram que foi com o sogro. É nível Nelson Rodrigues mesmo, avisei no título.
Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa, escrito no âmbito do projeto Crônicas dos Campos Gerais da Academia de Letras dos Campos Gerais
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