Adaptação de Stephen King se satisfaz com pouco, e pede que o espectador faça o mesmo
Donald Sutherland está se divertindo à beça durante a meia hora de tempo de tela que recebe em 'O Telefone do Sr. Harrigan', adaptação de Stephen King lançada pela Netflix. O icônico ator canadense interpreta o titular bilionário John Harrigan, que contrata um adolescente local (Jaeden Martell, de 'It: A Coisa') para ler em voz alta para ele quando seus olhos começam a falhar. Harrigan falece, mas sua relação com o menino não se desfaz além-túmulo; ao invés disso, ela continua misteriosamente através de um celular que o garoto havia comprado para o velho em vida.
É uma premissa de vulgaridade típica para King, cuja excelência está exatamente em elevar preocupações corriqueiras do público e transformá-las em histórias de terror que dobram como fábulas (por vezes, a)morais envolventes. Ne pele de Harrigan, Sutherland entende que seu trabalho é criar uma figura ao mesmo tempo intimidadora, traço que se tornou sua especialidade na fase mais recente da carreira, e deliberadamente vulnerável, quase patética, para engendrar a simpatia do público e fazê-lo entender que essa é só uma história de seres humanos e suas dores, engrandecidas pelo pesadelo tecnológico e ético da vida no século XXI.
O ator encontra esse equilíbrio de forma muito física. O seu Harrigan é frequentemente visto em poses imponentes, e vocifera os conselhos mais graves para o seu jovem amigo com a autoridade de quem os viveu e vive amarga e inclementemente. Ao mesmo tempo, Sutherland encurva a postura e estica o pescoço ao retratar a inaptidão do personagem com o celular, e entrega as previsões apocalípticas dele sobre o futuro de uma sociedade governada por seus smartphones com a entonação de um profeta de rua ensandecido que sabe muito bem que está certo.
O personagem título de 'O Telefone do Sr. Harrigan', enfim, é uma criação inteiramente de superfície, tremendamente orgulhosa disso, e muito eficiente no que propõe. É uma pena que o roteirista e diretor do filme, John Lee Hancock, não saiba seguir a deixa do seu astro. Nas mãos do homem responsável por pérolas água-com-açúcar como 'Um Sonho Possível' e 'Walt nos Bastidores de Mary Poppins', o cinismo cuidadoso da elaboração de gênero de Sutherland e King é desidratado por uma abordagem protocolar da direção, zelosa até os limites com as convenções do suspense.
Daí vem a trilha sonora intrusiva de Javier Navarrette, que tenta fabricar tensão onde, na elaboração visual ou no texto de Hancock, ela não existe. O montador Robert Frazen também tenta incluir rimas visuais interessantes aqui e ali, mas 'O Telefone do Sr. Harrigan' é largamente uma peça dramática, tingida levemente com a acidez sinistra própria de King, sobre a moralidade da vingança e as falhas e virtudes de uma geração analógica que vai se perdendo para o tempo. Não há problema em priorizar o texto, é claro, mas Hancock deveria ter se certificado de que tinha pontos menos óbvios e insípidos para fazer sobre os seus temas se quisesse ir por esse caminho.
Da forma como está, Sr. Harrigan revisita platitudes e pouco justifica suas referências literárias e o escopo shakespeariano que busca dar ao drama do seu protagonista - deixando, inclusive, o normalmente brilhante Jaeden Martell perdido em um oceano de choros e absolutos morais imerecidos. Como passatempo, o filme da Netflix faz correr as 1h46 de sua metragem, mas o sentimento vazio que fica quando sobem os créditos não engana: este é um filme completamente acomodado à própria mediocridade.
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