Confira a Crônica da semana da Academia de Letras dos Campos Gerais: "Audiência de instrução"
Escutei o relato abaixo de diversas pessoas nesses anos em que resido nos Campos Gerais. Se é crônica, farsa, lenda ou parábola, desconheço, mas vez em quando alguém me conta.
Era audiência de instrução numa ação de aposentadoria rural. Audiência corriqueira, quase todos os dias saem várias. Juiz e advogados a postos, a parte com aquele semblante que as pessoas ostentam quando vão a fóruns e hospitais.
Dali a pouco, o juiz pergunta se a parte (a saber: um agricultor idoso) tinha documento que provasse o tempo que dizia ter trabalhado no campo. Pergunta reta assim, é bom que se diga, era coisa rara naqueles tempos (não sei quando foi, estou fabulando que seja história velha). A Justiça não estava próxima do cidadão comum, juízes interrogavam as partes sobre animus domini, actor voluntarius agitur e outros latinórios acessíveis somente aos bacharéis, rábulas e outros adeptos da Corte.
Mas a parte, isto é, o idoso, não tinha documento nem testemunha viva. O sujeito nascia em casa mesmo, desde a primeira infância lavrava a terra com os irmãos (os que sobreviviam), gerava filhos para continuar trabalhando a terra (os que sobreviviam), em algum momento morria e era enterrado debaixo da mesma terra; nem certidão de nascimento às vezes tinha.
Sempre foi e talvez continue sendo a crônica desse brasileiro até o dia em que o homem finalmente logre aniquilar a natureza e por ela ser aniquilado, pondo fim a todas as coisas conhecidas e desconhecidas. Sobreviver ao parto, não se desfazer em disenteria nem perecer de meningite, dominar o solo – arar e cultivar, semear, colher –, suportar as sucessões de chuva – pouca ou excessiva – e o mormaço cruel, as pragas e as pestes, evitar a morte até morrer, lidar escassamente com papéis.
O pobre do agricultor pobre era tão analfabeto nesse dia como naquele em que nasceu, mas sem entender de lei escutou a pergunta e já viu tudo: documento? Prova? Isso não se usava naquelas bandas. Adeus aposentadoria rural. Levou as mãos ao rosto por puro desalento.
E aí o juiz deu com aquelas mãos. Nunca tinha visto coisa semelhante, eram grossas, escalavradas de puro calo, queimadas por mil anos de sol. O juiz era nascido e crescido na cidade, mas já havia visto raízes de carvalho; era nisso que as mãos de dedos tortos faziam pensar: em raízes de carvalho.
Prolatou na audiência mesmo a sentença: ao idoso, a aposentadoria. Sequer usou o latim cuique suum ("a cada um o seu"). Poder prolatar sentença em audiência, está no Código.
Texto de autoria de Luiz Murilo Verussa Ramalho, servidor do Ministério Público Estadual, residente em Ponta Grossa, escrito no âmbito do projeto Crônicas dos Campos Gerais da Academia de Letras dos Campos Gerais.
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