Na UEPG, a partir da aprovação no Vestibular, os estudantes são acolhidos pela Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (Prae), que faz orientação sobre os cursos ofertados pela instituição
Quem passa pelo Bloco B, do Campus Central da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), pode encontrar Julia e Rosilene imersas nos estudos. Além de colegas de curso, ambas têm histórias em comum: entraram na graduação por meio do Vestibular dos Povos Indígenas. Alunas do curso de Pedagogia, elas não estão sozinhas na trajetória. Em 2023, a UEPG conta com 31 alunos indígenas; 29 na graduação e dois na pós-graduação – o maior número desde que a Política de Permanência Indígena iniciou, em 2002. Dos 23 anos de implementação da medida, 15 alunos indígenas já se formaram pela UEPG. No Dia dos Povos Indígenas, comemorado nesta quarta-feira (19), alunos da UEPG afirmam: lugar de indígena é também na Universidade.
O objetivo dos alunos indígenas que entram no ensino superior é quase sempre o mesmo: retornar o aprendizado recebido para a sua comunidade e mostrar que lugar de indígena é, também, na Universidade. Para Rosilene Gynprag Abreu, o destino não será diferente. “Eu tenho experiência em trabalhar em escola e para mim seria uma oportunidade de trabalhar dentro da aldeia, porque quando a gente pensa em fazer faculdade nas instituições, a gente pensa na comunidade também”, conta.
Rosilene está no quarto ano de Pedagogia, estuda a alfabetização de crianças indígenas e pretende trabalhar na área quando se formar. O sonho nunca é individual, mas coletivo, para ela. “Já tinha pensado em fazer faculdade, porque na comunidade onde vivo as crianças sempre têm um sonho e eu pensava assim: se um dia eu conseguir entrar na faculdade, eu vou persistir, mesmo que as dificuldades permaneçam”, ressalta.
As dificuldades apareceram durante a graduação. Nascida e criada na Terra Indígena de Faxinal, de Cândido de Abreu, o Kaingang é o primeiro idioma da aluna. O português veio depois. “Aqui é um ambiente diferente que nós não estamos acostumados a viver e por isso acontece muito a desculturação”. O fato de viver longe da própria cultura, fez com que o filho de Rosilene também vivesse distante da língua materna. “Uma coisa que sinto falta é que meu filho não pôde aprender e se alfabetizar na língua Kaingang, porque ele já passou quatro anos aqui e não consegue ler ou escrever na própria língua, e isso para mim é triste”.
Julia Isabela de Souza também sabe o que é viver distante de casa. Da Terra Indígena Kakané Porã, de Curitiba, Pedagogia não era a primeira opção da aluna. Antes do curso atual, ela fez Direito por quatro anos. A mudança se deu pela vontade de ajudar a sua comunidade. “Ficava me perguntando o que iria fazer depois de me formar e como iria ajudar minha comunidade. E única área que veio na minha cabeça era a educação”, explica.
Assim como Rosilene, Julia enfrentou desafios. O maior deles é a distância de casa, segundo ela. “As pessoas não entendem e não procuram saber o porquê de estarmos aqui. Nós estamos longe da nossa família, da nossa comunidade. Isso é desafiador ter que ficar longe das pessoas que você ama para tentar levar isso [o aprendizado] depois para eles, então todo o dia é um desafio”, relata.
A saudade é sentimento diário das alunas. “Eu optei por deixar minha filha na aldeia para fazer faculdade e acabei perdendo a infância dela, de ver ela crescer e o que ela aprendeu, aí sabendo das coisas pelo telefone. Às vezes, dá vontade de largar tudo, por conta dessa questão de saudade, mas a gente sempre pensa na nossa comunidade e no futuro das crianças”, destaca Julia.
Orgulho
Apesar dos desafios, o orgulho por ser indígena, o sentimento de pertencimento a uma comunidade e a força da ancestralidade são maiores. “Nossos ancestrais lutaram muito para que nós pudéssemos frequentar uma Universidade”, ressalta Julia. Para Rosilene, estar no ensino superior é sinônimo de marcar presença. “Estarmos aqui nos dá visibilidade e faz as pessoas perceberem que indígenas também existem e que podemos ser o que quisermos. Isso não vai deixar a gente ser menos indígena”.
Frequentar uma Universidade como indígena também significa quebrar preconceitos, para Julia “Aqui, nós não precisamos ser aquilo que o homem branco sempre falou, que lugar de indígena é no meio do mato. A Universidade é lugar de indígena, sim, a UEPG é terra indígena, sim, e merecemos respeito”, enfatiza.
Assim como Julia, Mateus Matias Claudino entrou na UEPG pelo Vestibular dos Povos Indígenas e optou por mudar de curso. Depois de três anos estudando Agronomia, entrou em 2023 para o curso de Medicina. A paixão pelo desenho se uniu com os estudos na área da saúde. “Eu participava de uns projetos antes em que desenhava parte anatômicas, então agora eu uso esse conhecimento para estudar o conteúdo”, conta.
Com a ajuda dos objetos disponíveis no Laboratório de Anatomia, Mateus carrega um caderno recheado de desenhos de partes do corpo humano, como ossos e órgão, com detalhes informativos em cada canto. “Para mim, é ótimo saber e ver que meu povo está procurando algo melhor para eles. E quanto mais indígena na Universidade, é um incentivo para os mais novos virem fazer faculdade também”, pontua. As características únicas, como vestir o jaleco com uma pulseira feita à mão no braço direito e o boné aba reta, fazem de Mateus orgulhoso por sem quem é, sem esquecer de onde veio. “Quando me formar, eu pretendo trabalhar como médico da família, não só dentro da minha aldeia na minha cidade, mas também mostrar a todos que nós indígenas também temos capacidade de fazer o que quisermos”, finaliza.
Vestibular dos Povos Indígenas
Julia, Mateus, Rosilene e demais alunos indígenas da UEPG são fruto da Política de Permanência Indígena, criada pela Lei Estadual nº 14.995/2006, que assegura o ingresso de estudantes indígenas nas Universidades Estaduais e Federais do Paraná. O ingresso acontece por meio de Vestibular específico, que oferta anualmente 52 vagas para a graduação.
Depois de matriculados, os universitários indígenas recebem o auxílio instalação e auxílio permanência, durante todo o período em que estiverem na universidade. Mas direito conquistado não é sinônimo de privilégio. “Às vezes, as pessoas não entendem que é nosso direito estar aqui. Eu tive que viajar mais de seis horas para fazer a prova, ficar três dias fora de casa e fazer prova oral para provar que tenho capacidade de entrar, então pra gente não é fácil, mas é nosso direito”, enfatiza Julia.
Na UEPG, a partir da aprovação no Vestibular, os estudantes são acolhidos pela Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (Prae), que faz orientação sobre os cursos ofertados pela instituição. Depois, os alunos escolhem o curso desejado e são matriculados. Todo o trabalho de acolhimento institucional acontece por meio da Prae, com Diretoria de Ações Afirmativas e de Diversidade, Comissão Universidade Para o Índio (Cuia) e os professores do curso em que os acadêmicos estão inseridos. “Realizamos sempre um acompanhamento pedagógico, social e psicológico, para garantia do processo de inclusão e permanência no ensino superior”, informa Iomara Favoretto, pedagoga da Prae. Além da bolsa permanência garantida por lei, a UEPG também oferece isenção de taxa do Restaurante Universitário, auxílio transporte e um espaço de estudos, o Centro Acadêmico Indígena.
A Universidade se constitui num espaço de formação, produção de conhecimento e de diversidade, conforme destaca Iomara. “O ingresso de acadêmicos indígenas reflete a institucionalização de uma política que acolhe os direitos dos povos indígenas de acesso e permanência no ensino superior”. A presença indígena no ensino superior é relevante e fundamental para a formação de profissionais que possam atuar nas comunidades. “Em virtude de questões culturais e linguísticas, isso é muito necessário. A presença dos alunos na UEPG nos proporciona a oportunidade de encontrar formas de conviver com a diversidade étnica, cultural e linguística, fazendo com que possamos aprender com eles e nos tornarmos cada vez mais plurais”, completa.
Neste ano, as provas do Vestibular Indígena serão aplicadas em 07 e 08 de maio, de forma descentralizada em sete polos – Mangueirinha, Manoel Ribas, Apucaraninha, Santa Helena, Nova Laranjeiras, Cornélio Procópio e Curitiba. O processo de seleção é realizado dentro das terras indígenas e ocorre durante dois dias, com ajuda dos acadêmicos indígenas. “Estamos trabalhando para que mais indígenas façam a graduação, nós vamos nas comunidades falar e ajudamos no dia do vestibular, para fazer com que eles façam e tenham uma orientação e saibam o quanto é desafiador”. E sobre ter cada vez mais colegas indígenas na Universidade, Julia destaca a satisfação. “Que cada vez tenhamos indígenas na UEPG, pois aqui também é espaço indígena”.
Da Assessoria
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