Adaptação de “Geni e o Zepelim” é alvo de críticas por escalar atriz cis no papel principal de personagem historicamente transexual
- culturacaopg
- há 11 minutos
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A escolha de elenco para o longa-metragem Geni e o Zepelim, inspirado na icônica canção de Chico Buarque, gerou intenso debate nas redes sociais e dentro da comunidade LGBTQIA+. A polêmica surgiu após a diretora Anna Muylaert anunciar que Thainá Duarte, atriz cisgênero, interpretará a protagonista — uma personagem tradicionalmente entendida como travesti ou mulher trans.
Embora a canção de 1978, parte da Ópera do Malandro, não explicite a identidade de gênero de Geni em seus versos, o contexto da obra original — tanto no teatro quanto no cinema — sempre indicou que a personagem é trans. No palco e nas telas, Geni foi inicialmente interpretada por homens cis: Emiliano Queiroz e J.C. Violla, o que reforça essa leitura, além da evidente crítica à transfobia incorporada à narrativa.
Diante da reação negativa, Muylaert recorreu às redes sociais para se pronunciar. Em vídeo publicado no Instagram, ela defendeu a proposta de sua adaptação, afirmando que a identidade de gênero da personagem será diferente da interpretação tradicional:
“Durante o processo de criação desse filme, a gente entendeu que a letra do Chico e o conto do Guy de Maupassant, Bola de Sebo – no qual ele disse ter se inspirado –, poderia ter várias leituras. Poderia ser uma mulher trans, uma mãe solteira, uma carroceira da favela do Moinho, uma presidente tirada do poder sem crime de responsabilidade, uma floresta atacada diariamente por oportunistas”.
Segundo a diretora, a decisão de retratar Geni como uma mulher cisgênero amazônica foi uma forma de dialogar com outras realidades marginalizadas, mas também resultou de uma reflexão sobre representatividade e autoria:
“[Escolhemos] fazer uma prostituta cis na Amazônia. Uma inspiração, uma influência do Iracema, e até do que acontece hoje no Marajó, que o filme Manas retrata. A gente entendeu que essa poesia poderia ter várias interpretações, e que a gente poderia fazer esta versão amazônica cis com a atriz Thainá Duarte”.
Ela ainda rebateu diretamente as acusações de transfake — termo usado quando atores cis são escalados para papéis trans — ao reforçar que sua Geni não será uma personagem trans:
“Não é essa a ideia, a personagem é realmente cis”.
Apesar de justificar a escolha, Muylaert também indicou abertura para possíveis mudanças, caso o debate público aponte para a necessidade de repensar a decisão:
“Se a sociedade – não apenas a comunidade trans, mas também todos os fãs da música do Chico e também do conto do Guy de Maupassant – achar, se a gente computar que realmente hoje, em 2025, a gente só pode interpretar Geni como trans, vamos repensar o nosso filme”.
Ela concluiu destacando que, para o filme, o foco continua sendo o corpo feminino como território de vulnerabilidade:
“Os corpos femininos, sejam cis ou trans, são corpos que estão sempre sob perigo. Corpos e almas e mentes, né? A gente sabe o que é ser mulher”.
As reações à fala da diretora foram diversas. Camila Pitanga ponderou:
“Você pode fazer o filme que quiser, com certeza… mas pondero que esta interpretação serve sim ao apagamento doloroso de mulheres trans. São poucos personagens com esse protagonismo, entende? É uma escolha que fere”.
Liniker também se manifestou, destacando os riscos do debate público nesse contexto:
“Eu acho que, no Brasil que a gente vive hoje, o debate ser aberto como votação, se é certo ter uma pessoa trans ou cis nesse papel, já nos expõe grandemente. O Brasil não é um país acolhedor aos nossos corpos e trajetórias, principalmente se tratando de um protagonismo numa produção audiovisual”.
A jornalista Eliana Alves Cruz relembrou o impacto histórico da personagem:
“[Em 1979] todo mundo identificava a transexualidade da Geni. Até as crianças. Geni virou motivo de bullying homofóbico e transfóbico em todas as escolas. E foi a primeira vez que me atentei para a dor desse estigma. Eu vi a dor dos meus colegas, porque eu mesma sofria algo parecido, mas no lugar do racismo. Passados mais de 40 anos, ouvir que Geni pode ser interpretada por uma mulher cis doeu em mim, quanto mais nas pessoas que correm risco de vida todo dia só por serem quem são”.
Debora Lamm finalizou com uma crítica ao que considera um retrocesso:
“A leitura e interpretação de qualquer obra é naturalmente livre, mas o que é a liberdade sem pensarmos também no humano? Vivemos num mundo onde o apagamento de pessoas trans é naturalizado, muito pouco refletido. Não optaria então por uma icônica Geni cisgênera, é um balde de água fria na possibilidade de fazer diferente! Geni é a oportunidade, infelizmente ainda rara, de uma protagonista trans!”.
A produção do longa Geni e o Zepelim é da Midgal Filmes em parceria com a Paris Entretenimento e a Globo Filmes. Ainda sem data de estreia, o filme se passa na Amazônia e acompanha uma prostituta que vive à margem da sociedade e se vê diante de um comandante opressor que invade sua cidade em um zepelim — personagem vivido por Seu Jorge, único nome confirmado ao lado de Thainá Duarte.
A polêmica segue aberta, reacendendo o debate sobre representatividade, protagonismo trans e liberdade criativa no cinema brasileiro.
Com informações: Omelete